Cartografia, que é a arte de fazer mapas, tem uma história antiga,
que remonta a milênios antes de Cristo. Nos tempos modernos, ou seja, a
partir da segunda metade do século XV, a elaboração de mapas tornou-se
uma atividade de interesse crescente, principalmente devido às grandes
navegações, que exigiam mapas cada vez mais confiáveis. E, por serem
mapas de grandes regiões, se não de todo o globo terrestre, os
cartógrafos procuravam descobrir a maneira de fazer um tal mapa de forma
a reproduzir as diferentes localidades do globo preservando, com
exatidão, na mesma escala, as várias distâncias entre elas. Isso
perdurou até que, em meados do século XVIII, o grande matemático
Leonardo Euler (1707-1783) demonstrou a impossibilidade desse intento. A
demonstração desse fato, relativamente simples, será feita no final
deste artigo.
Um outro momento importante da Cartografia do século XVI foi a
construção de um mapa com características especiais, muito apropriadas
às navegações, o chamado mapa de Mercator.
Falaremos dessas coisas e de outras mais no correr deste artigo.
O mapa-múndi de Ptolomeu
Cláudio Ptolomeu, da Escola de Alexandria, viveu no séc.
II d.C., uma época em que Alexandria, embora continuasse sendo o mais
importante centro de saber no mundo que rodeava o mar Mediterrâneo, já
apresentava um acentuado declíneo desde seu esplendor maior nos séculos
II e III a.C.
Ptolomeu é mais conhecido pela teoria geocêntrica do sistema solar, um estudo de fôlego e muito mérito apresentado em seu livro Almagesto, que foi a bíblia dos astrônomos até muitas décadas depois de Copérnico.
Outro livro muito importante de Ptolomeu, que também teve vida muito longa, foi a Geografia,
que influenciou cartógrafos, navegadores e astrônomos do século XV e
boa parte do século XVI. É nesse livro que se encontra o mapa de
Ptolomeu já referido atrás. Para construí-lo, Ptolomeu baseou-se em
informações dos navegadores da época, mercadores que viajavam longas
distâncias pela Ásia, Norte da África e Europa, bem como exércitos que
se deslocavam por todos os territórios do Império Romano e muito além; e
valeu-se também das posições, por meio das coordenadas geográficas, de
localidades bem conhecidas, como Alexandria, Siena, Rodes e várias
outras.
Uma das curiosidades desse mapa é que ele apresenta o oceano Índico
como sendo um mar interior, ou seja, cercado de terra por todos os
lados. Alguns autores dizem que esse erro só foi desfeito quando o
navegador português Bartolomeu Dias cruzou o extremo sul da África em
1488, ultrapassando o que ele chamou de Cabo das Tormentas.
Embora tenha realmente passado do oceano Atlântico ao oceano Índico,
Bartolomeu Dias não foi tão longe como Vasco da Gama, cujo feito de
chegar às Índias deixou claro o grande erro do mapa de Ptolomeu.
Depois dessas grandes navegações do final do século XV, o mapa de
Ptolomeu foi perdendo importância, mesmo porque os cartógrafos de então
contavam com dados mais precisos para elaborar seus mapas. Mas, mesmo
assim, muitos desses novos mapas começavam com o velho mapa de Ptolomeu,
que ia sendo corrigido e melhorado. As navegações foram um grande
estímulo para que se intensificassem os esforços na confecção de mapas
cada vez mais informativos e confiáveis, dentre os quais o mapa de
Mercator, que ficou sendo o mais importante e famoso até os dias de
hoje.
Quem foi Mercator
O mapa de Mercator
Sobre um globo terrestre as linhas de rumo são, em geral, curvas
espiraladas. Uma determinada linha de rumo faz o mesmo ângulo com todos
os meridianos, de forma que, sendo esse ângulo diferente de 90o, essa linha vai espiralando mais e mais à medida que se aproxima de um dos pólos geográficos (figura 1).
Se o ângulo com os meridianos for 90o, a linha de rumo
será um paralelo; e será um meridiano se esse ângulo for zero. A figura 2
exibe uma linha de rumo que se origina em local próximo a Caracas, na
Venezuela, e termina quase no Pólo Norte. Observe que a linha de rumo
não é o caminho mais curto entre os pontos de partida e de chegada; o
mais curto é um arco de círculo máximo, que é um círculo cujo plano
passa pelo centro do globo.
Para que a navegação por linhas de rumo funcione com precisão é
necessário dispor de um mapa plano no qual as linhas de rumo sejam
retas; o navegador, então, deve traçar, no mapa, uma reta pelos dois
pontos, o de partida e o de chegada, e seguir essa linha de rumo com
auxílio de sua bússola. Mas, até meados do século XVI, não havia mapas
em que as linhas de rumo fossem retas. Foi somente em 1569 que surgiu o
mapa de Mercator, cuja característica principal era justamente essa: as
linhas de rumo no mapa plano eram retas fazendo ângulos constantes com
os meridianos. A figura 3 ilustra um mapa de Mercator com a mesma linha
de rumo exibida nos globos da figura 2; agora, no mapa plano, ela é
reta.

A idéia e o trabalho de Mercator
Mas isso ainda não garante que outras linhas de rumo sejam
representadas por retas. Suponhamos os meridianos repre-sentados por
retas verticais e os paralelos por retas horizontais no mapa plano. Como
qualquer linha de rumo sobre o globo terrestre faz o mesmo ângulo com
todos os meridianos que ela corta, a reta que a representa no mapa plano
deve fazer o mesmo ângulo com as retas verticais.
Veremos, em seguida, como Mercator conseguiu isso.
Consideremos uma esfera de raio R, representando o globo terrestre, sendo R escolhido
de acordo com a escala desejada, de maneira que os comprimentos ao
longo do equador permaneçam inalterados na construção do mapa plano.

Nessa esfera, sejam
e
dois
segmentos de paralelos entre os mesmos meridianos, o primeiro deles
sobre o equador e o segundo sobre um paralelo de latitude θ (figura 4).
Segundo Mercator, eles são representados no mapa plano pelos segmentos
de mesmo comprimento A'B'e C'D', respectivamente. No entanto,
e
têm comprimentos diferentes, pois 





Assim, à medida que
vai-se afastando do equador com θ crescente, seu comprimento vai diminuindo progressivamente, tendendo a zero com θ→ 90o. Mas C'D' deve ter o mesmo comprimento que A'B' =
.


Portanto, devemos ter

Como sec θ > 1 para θ entre zero e 90o, vemos que os comprimentos ao longo dos paralelos devem ser expandidos pelo fator sec θ, vale dizer, C'D' =
secθ.

Temos de ver agora como proceder com os comprimentos ao longo dos
meridianos. O caso dos paralelos é mais simples porque o fator sec θ é
constante ao longo deles. Mas, ao longo de um meridiano, sec θ cresce à
medida que um ponto considerado se desloca do equador para um dos pólos.
Aqui está o procedimento mais difícil de Mercator. Para entender esse
procedimento, seja C um ponto de latitude θ (figura 4), que sofre um deslocamento muito pequeno ∆s ao
longo de uma linha de rumo, e seja α o ângulo que esse deslocamento faz
com o meridiano local (figura 5a). Esse deslocamento ∆s se decompõe nas componentes horizontal e vertical, ∆s sen α e ∆s cos
α, respectivamente. Como vimos, no mapa plano o comprimento do
deslocamento horizontal é aumentado pelo fator sec θ, de sorte que
devemos também aumentar o deslocamento vertical pelo mesmo fator para
preservar o ângulo da linha de rumo com os meridianos. Então, a imagem
dessa linha de rumo no mapa plano será retilínea, pois estará fazendo o
mesmo ângulo α com as imagens de todos os meridianos.

Veremos agora como calcular o comprimento do segmento A'C' da figura 4 a partir do comprimento do arco
Para isso, passemos a denotar com θ0 a latitude do ponto C. Repare que, enquanto o deslocamento finito horizontal C'D' é o produto do original
por
sec θ, o mesmo não é verdade para o deslocamento vertical, pois θ varia
ao longo de cada meridiano. Para entender o cálculo do segmento A'C' da figura 4, vamos imaginar o arco
decomposto numa soma de deslocamentos elementares ∆v = R ∆ θ (figura 5b), θ variando de zero ao valor final θ0. No mapa plano, cada um desses deslocamentos elementares deve ser aumentado pelo fator sec θ, resultando em ∆v secθ = R secθ
∆θ. Mas, repare bem, cada deslocamento elementar é multiplicado por um
valor diferente de sec θ, pois o ângulo θ varia. Assim, o deslocamento
finito A'C' será aproximadamente igual à soma de todos
esses deslocamentos elementares. Isso pode ser escrito na forma de um
somatório assim:



A'B' ≈ R ∑θ ∆θ.

Como secθ vai crescendo com o crescer de θ, as várias parcelas desse
somatório vão se tornando cada vez maiores, o que tem como consequência o
alongamento das distâncias verticais, um alongamento progressivamente
mais acentuado que o das distâncias horizontais. E o mapa da figura 3
realmente exibe essa diferença de alongamentos, o que faz uma região
como a Groenlândia parecer maior que toda a América do Sul.
Embora o mapa de Mercator introduzisse uma inovação importante na
Cartografia, ele não foi aceito de imediato, mesmo porque, sabidamente,
os mapas daquela época sempre continham muitas imprecisões; e não seria
um mapa a mais que iria mudar a cabeça das pessoas de uma hora para
outra. Mas depois de algum tempo os homens do mar e os cartógrafos foram
se apercebendo das vantagens do mapa de Mercator, o qual foi sendo cada
vez mais procurado, e foi ganhando credibilidade. Outros mapas mais
aperfeiçoados foram sendo elaborados segundo o mesmo princípio de
Mercator. Nisso ajudou muito uma publicação de 1599 em que o matemático
Edward Wright publicou a primeira explicação do mapa de Mercator segundo
um somatório como o que escrevemos há pouco. Mas muitas décadas ainda
se passariam para que tudo ficasse bem esclarecido em termos do conceito
de integral, que só estaria razoavelmente desenvolvido no final do
século seguinte. De fato, o limite do referido somatório, quando ∆θ
tende a zero, é exatamente a integral da função sec θ entre os limites θ
= 0 e θ = θ0, isto é, podemos escrever .

O teorema de Euler
Finalmente vamos explicar e demonstrar o resultado de Euler a que nos referimos na Introdução.
Esse resultado de Euler data de 1775, de sorte que até esse ano os
cartógrafos continuavam sua faina em busca de um mapa plano do globo
terrestre ou de uma região do globo com a propriedade de que todas as
distâncias entre diferentes lugares se mantivessem inalteradas. Mais
especificamente, é possível construir um mapa plano do globo terrestre,
ou de uma parte do globo, com uma escala fixa?
Dito de outra maneira, é
possível construir um mapa plano para o qual a distância entre quaisquer
dois de seus pontos é sempre igual a um múltiplo fixo da distância ao
longo dos pontos correspondentes no globo, medida ao longo do círculo
máximo por esses pontos?
A demonstração de que isso é impossível é tão simples que é de admirar que ninguém a tivesse descoberto bem antes de Euler.
Para provar essa impossibilidade, basta considerar uma pequena região
ao redor de um ponto P do globo, este representado na figura 6 por uma
esfera de raio R. Para simplificar, vamos supor que R já tenha sido
escolhido de forma que o mapa esférico e o mapa plano estejam na mesma
escala. Assim, raciocinando por absurdo, um arco decomprimento r ao
longo de um grande círculo da esfera seria transformado num segmento
retilíneo de comprimento igual no mapa plano. Repare que os pontos Q na
esfera, com
, formam uma circunferência de raio s < r, cuja imagem no mapa plano
é uma circunferência de raio r, portanto, de comprimento 2πr. Ao mesmo
tempo, o comprimento dessa circunferência deveria ser 2πs, pois ela é
imagem de uma circunferência de raio s. Mas, como s < r, isso
contradiz a afirmação anterior e conclui a demonstração.

Qualquer pessoa que tenha desfrutado o prazer de comer uma boa
tangerina sabe que é impossível transformar sua casca, ou parte dela,
num objeto plano. O mesmo é verdade de uma bola de borracha rasgada. E
há de reconhecer, nessas experiências, a presença do resultado de Euler.
Pesquisa realizada no site:
http://matematica.com.br
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