
Livros
tradicionais de receitas foram a base para pesquisadores da USP traçar a
evolução da culinária e a predominância de ingredientes em uma cultura.
O estudo, coordenado pelo físico Antônio Roque - professor do
Departamento de Física e Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto (FFCL/USP) - partiu da temática de redes
complexas para capturar a dinâmica que gera a curva evolutiva cultural a
partir das receitas. “Os ingredientes e receitas constituem um exemplo
desse tipo de rede, pois esses elementos estão conectados entre si”,
explica. De acordo com a pesquisa, as obras fornecem dados estatísticos
relevantes sobre as cozinhas, indicando a importância de produtos,
maneiras de preparar e possíveis combinações. O artigo sobre esta
pesquisa foi publicado na edição de março da revista Nature.
A
proposta do trabalho foi idealizada em parceria com a nutricionista
Rosa Diez-Garcia (professora do Curso de Nutrição e Metabolismo) e o
físico Osame Kinouchi, também professor da universidade. O grupo é
composto ainda por Adriano Holanda (Cientista da Computação) e o físico
Pedro Zambianchi. Esta equipe eclética identificou a cozinha como um
importante fenômeno cultural e concluiu que o progresso da culinária é
lento e conservador. “Embora existam trocas e acréscimo de ingredientes,
os originais não desaparecem por completo. O tempo que se leva para uma
substituição pode ser tão longo que ultrapassa várias gerações,
tornado-se difícil de acompanhar”, destaca Roque.
Essa
permanência das receitas tradicionais foi detectada a partir de uma
complexa equação matemática simulada em computador, desenvolvida pelos
pesquisadores. Roque classifica como “efeito fundador” o fato de
ingredientes resistirem às mudanças. Para compor o trabalho foram
analisados livros do Brasil, da França, Inglaterra, além de um exemplar
medieval. O título brasileiro foi Dona Benta (edições de 1946, 1969 e
2004). O coordenador justifica que a escolha se deve ao fato da obra ter
sido reeditada 76 vezes durante 60 anos, com mais de 1 milhão de
exemplares vendidos. A lista incluiu o francês Larousse Gastronomique, o
britânico New Penguin Cookery Book e o medieval Plen Delite. Esse
material gerou uma base de três mil receitas, que foram transcritas à
mão. “Analisamos todas as receitas desses livros, mesmo as de sobremesas
e coquetéis. O que deu mais trabalho foi transcrever as receitas do
Larousse, pois ele não lista os ingredientes de cada receita
separadamente como os demais, mas obriga que cada uma tenha que ser lida
inteiramente para se extrair os ingredientes usados”, diz.
De
início, a pesquisa avaliou o comportamento da freqüência dos
ingredientes classificando-os num ranking e calculando suas ocorrências
nas receitas. Roque descreve que em todas as culinárias acontece a mesma
variação de freqüência de produtos, o que em matemática é chamado de
“Lei de Potência”. “O que essa lei implica é que o ingrediente que está
na décima posição do ranking, por exemplo, ocorre em 2,6 mais receitas
que o ingrediente que está na vigésima posição; o ingrediente da posição
50 ocorre em 2,6 mais receitas que o da posição 100; o que está na
posição 80 ocorre em 2,6 mais receitas que o da posição 160; e assim por
diante”. Segundo o professor, esta descoberta independe de quais sejam
os ingredientes que estejam nessas ranking de frequência, indica uma
estrutura estatística comum às culinárias estudadas. “É justamente esta
estrutura que o nosso modelo matemático de evolução da culinária
reproduz após ser simulado no computador”.
Como
exemplo, o professor utiliza a edição de 2004 do livro Dona Benta. Os
dez ingredientes mais freqüentes são: sal, açúcar, pimenta preta (do
reino), farinha de trigo, manteiga, cebola, água, ovo, leite e óleo
vegetal. Suponhamos que esta edição tenha mil receitas. A farinha de
trigo, situada na quarta posição, apareceria 260 vezes em comparação com
o ovo, que ocupa o oitavo lugar e apareceria apenas 100 vezes (o que
corresponde que o quarto do ranking, quando comparado com o oitavo,
sempre vai aparecer 2,6 mais nas receitas de qualquer livro de
culinária). Roque explica que para aplicar a fórmula é preciso escolher
dois números, sendo um o dobro do outro. Para esta análise, não importa o
ingrediente, mas sim a posição que ele ocupa no ranking. Assim no
Larousse Gastronomie os dez mais são: sal, manteiga, pimenta preta (do
reino), água, cebola, farinha de trigo, açúcar, alho, cenoura e limão. O
quarto da lista é a água e o oitavo é o alho. Se esta obra tivesse mil
receitas, a água apareceria o mesmo número de vezes, ou seja, 260 vezes,
enquanto o alho teria somente 100 ocorrências. Seja qual for o livro,
basta aplicar este modelo evolutivo para saber qual ingrediente aparece
2,6 vezes mais que o outro.
Para
compreender essa equação gastronômica, basta citar o nabo que era
amplamente usado na Europa antes da introdução da batata e ainda
permanece em uso. O Japão, que é um país altamente conservador, continua
utilizando-o em diferentes pratos. “O que seria da culinária européia
sem a batata e o tomate?”, indaga o professor. Os livros capturam as
trocas alimentares e sua permanência. Esta foi a primeira abordagem, mas
o grupo está empenhando em extrair novos dados. Segundo a professora
Rosa, o estudo está em sua primeira etapa, na qual foi identificada uma
estrutura universal em diferentes culinárias. Um aspecto que também pode
ser verificado é o peso do ingrediente e seu relfexo no aspecto
nutricional. “Com isso será possível ter uma idéia da relação com a
quantidade na construção de uma culinária. Mas é claro que há inúmeros
outros fatores que exerceram pressão para que cada grupo humano
resolvesse sua alimentação de uma dada maneira”, explica.
A
pesquisa projeta uma reflexão a respeito das tendências gastronômicas
que estão em ebulição na alimentação moderna. A urgência por novas
receitas, pratos inventivos, combinações inusitadas e tecnologias de
preparo não estão harmonizadas com a dinâmica da culinária tradicional,
que mantém um ritmo slow. A despeito das pressões do mercado; da
necessidade de inovação aspirada pelo público da Alta Gastronomia; a
abordagem dos os meios de comunicação; as premiações de guias como o
Michelin; e a globalização dos alimentos, a culinária tradicional
permanece superior a estas interferências econômicas, sociais ou
culturais. “As cozinhas regionais não irão desaparecer. E isto não
importa a cultura”, afirma o professor Roque. A nutricionista Rosa
questiona sobre o que de fato vai permanecer em meio a busca de tantas
novidades gastronômicas. “Há limites para absorver todas as novidades.
As mudanças se estabelecem pouco a pouco e são incorporadas no
repertório pré-existente", define Rosa. Os ingredientes e receitas estão
associados à cultura local, às cozinhas regionais e carregam origem,
memória e tradição.
Equipe Malagueta
Texto: Juliana Dias
Edição de imagens: Carolina Amorim
Revisão: Flávia Lobo
Texto: Juliana Dias
Edição de imagens: Carolina Amorim
Revisão: Flávia Lobo
Pesquisa realizada no site:
http://www.lucianopires.com.br
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