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quarta-feira, 7 de março de 2012

A evolução matemática da culinária


Livros tradicionais de receitas foram a base para pesquisadores da USP traçar a evolução da culinária e a predominância de ingredientes em uma cultura. O estudo, coordenado pelo físico Antônio Roque - professor do Departamento de Física e Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCL/USP) - partiu da temática de redes complexas para capturar a dinâmica que gera a curva evolutiva cultural a partir das receitas. “Os ingredientes e receitas constituem um exemplo desse tipo de rede, pois esses elementos estão conectados entre si”, explica. De acordo com a pesquisa, as obras fornecem dados estatísticos relevantes sobre as cozinhas, indicando a importância de produtos, maneiras de preparar e possíveis combinações. O artigo sobre esta pesquisa foi publicado na edição de março da revista Nature.

A proposta do trabalho foi idealizada em parceria com a nutricionista Rosa Diez-Garcia (professora do Curso de Nutrição e Metabolismo) e o físico Osame Kinouchi, também professor da universidade. O grupo é composto ainda por Adriano Holanda (Cientista da Computação) e o físico Pedro Zambianchi. Esta equipe eclética identificou a cozinha como um importante fenômeno cultural e concluiu que o progresso da culinária é lento e conservador. “Embora existam trocas e acréscimo de ingredientes, os originais não desaparecem por completo. O tempo que se leva para uma substituição pode ser tão longo que ultrapassa várias gerações, tornado-se difícil de acompanhar”, destaca Roque.

Essa permanência das receitas tradicionais foi detectada a partir de uma complexa equação matemática simulada em computador, desenvolvida pelos pesquisadores. Roque classifica como “efeito fundador” o fato de ingredientes resistirem às mudanças. Para compor o trabalho foram analisados livros do Brasil, da França, Inglaterra, além de um exemplar medieval. O título brasileiro foi Dona Benta  (edições de 1946, 1969 e 2004). O coordenador justifica que a escolha se deve ao fato da obra ter sido reeditada 76 vezes durante 60 anos, com mais de 1 milhão de exemplares vendidos. A lista incluiu o francês Larousse Gastronomique, o britânico New Penguin Cookery Book e o medieval Plen Delite. Esse material gerou uma base de três mil receitas, que foram transcritas à mão. “Analisamos todas as receitas desses livros, mesmo as de sobremesas e coquetéis. O que deu mais trabalho foi transcrever as receitas do Larousse, pois ele não lista os ingredientes de cada receita separadamente como os demais, mas obriga que cada uma tenha que ser lida inteiramente para se extrair os ingredientes usados”, diz.

De início, a pesquisa avaliou o comportamento da freqüência dos ingredientes classificando-os num ranking e calculando suas ocorrências nas receitas. Roque descreve que em todas as culinárias acontece a mesma variação de freqüência de produtos, o que em matemática é chamado de “Lei de Potência”.  “O que essa lei implica é que o ingrediente que está na décima posição do ranking, por exemplo, ocorre em 2,6 mais receitas que o ingrediente que está na vigésima posição; o ingrediente da posição 50 ocorre em 2,6 mais receitas que o da posição 100; o que está na posição 80 ocorre em 2,6 mais receitas que o da posição 160; e assim por diante”. Segundo o professor, esta descoberta independe de quais sejam os ingredientes que estejam nessas ranking de frequência, indica uma estrutura estatística comum às culinárias estudadas. “É justamente esta estrutura que o nosso modelo matemático de evolução da culinária reproduz após ser simulado no computador”.

Como exemplo, o professor utiliza a edição de 2004 do livro Dona Benta. Os dez ingredientes mais freqüentes são: sal, açúcar, pimenta preta (do reino), farinha de trigo, manteiga, cebola, água, ovo, leite e óleo vegetal. Suponhamos que esta edição tenha mil receitas. A farinha de trigo, situada na quarta posição, apareceria 260 vezes em comparação com o ovo, que ocupa o oitavo lugar e apareceria apenas 100 vezes (o que corresponde que o quarto do ranking, quando comparado com o oitavo, sempre vai aparecer 2,6 mais nas receitas de qualquer livro de culinária). Roque explica que para aplicar a fórmula é preciso escolher dois números, sendo um o dobro do outro. Para esta análise, não importa o ingrediente, mas sim a posição que ele ocupa no ranking. Assim no Larousse Gastronomie os dez mais são: sal, manteiga, pimenta preta (do reino), água, cebola, farinha de trigo, açúcar, alho, cenoura e limão. O quarto da lista é a água e o oitavo é o alho. Se esta obra tivesse mil receitas, a água apareceria o mesmo número de vezes, ou seja, 260 vezes, enquanto o alho teria somente 100 ocorrências. Seja qual for o livro, basta aplicar este modelo evolutivo para saber qual ingrediente aparece 2,6 vezes mais que o outro.

Para compreender essa equação gastronômica, basta citar o nabo que era amplamente usado na Europa antes da introdução da batata e ainda permanece em uso. O Japão, que é um país altamente conservador, continua utilizando-o em diferentes pratos. “O que seria da culinária européia sem a batata e o tomate?”, indaga o professor. Os livros capturam as trocas alimentares e sua permanência. Esta foi a primeira abordagem, mas o grupo está empenhando em extrair novos dados. Segundo a professora Rosa, o estudo está em sua primeira etapa, na qual foi identificada uma estrutura universal em diferentes culinárias. Um aspecto que também pode ser verificado é o peso do ingrediente e seu relfexo no aspecto nutricional. “Com isso será possível ter uma idéia da relação com a quantidade na construção de uma culinária.  Mas é claro que há inúmeros outros fatores que exerceram pressão para que cada grupo humano resolvesse sua alimentação de uma dada maneira”, explica.

A pesquisa projeta uma reflexão a respeito das tendências gastronômicas que estão em ebulição na alimentação moderna. A urgência por novas receitas, pratos inventivos, combinações inusitadas e tecnologias de preparo não estão harmonizadas com a dinâmica da culinária tradicional, que mantém um ritmo slow. A despeito das pressões do mercado; da necessidade de inovação aspirada pelo público da Alta Gastronomia; a abordagem dos os meios de comunicação;  as premiações de guias como o Michelin; e a globalização dos alimentos, a culinária tradicional permanece superior a estas interferências econômicas, sociais ou culturais. “As cozinhas regionais não irão desaparecer. E isto não importa a cultura”, afirma o professor Roque. A nutricionista Rosa questiona sobre o que de fato vai permanecer em meio a busca de tantas novidades gastronômicas. “Há limites para absorver todas as novidades. As mudanças se estabelecem pouco a pouco e são incorporadas no repertório pré-existente", define Rosa. Os ingredientes e receitas estão associados à cultura local, às cozinhas regionais e carregam origem, memória e tradição.

Equipe Malagueta
Texto: Juliana Dias
Edição de imagens: Carolina Amorim
Revisão: Flávia Lobo

Pesquisa realizada no site:
 http://www.lucianopires.com.br

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